No livro A Onda (Editora Zahar), a jornalista americana Susan Casey investiga os mistérios desse fenômeno que sempre dá um alô em nossas costas. Falando sobre a praia havaiana de Pe’ahi, conhecida como Jaws, ela conta como o mar era visto pelos antigos nativos: "Consideravam aquele um local sagrado e celebravam cerimônias nos penhascos acima. Dava para entender por quê. Eles acreditavam que toda pedra, folha, flor e gota d¿água, bem como as pessoas e os animais, encerrava uma força vital espiritual chamada mana. Todas as coisas da natureza estavam plenas de vida. Se você fechasse os olhos e ouvisse as rochas estrepitando e rangendo, era como se Pe¿ahi tivesse uma voz".
Pouco entendido pelos cientistas, temido pelos navegantes, o mar tem um significado quase espiritual para um grupo de pessoas que depende dele para sobreviver e se divertir. Talvez os surfistas estejam entre os que mais entendem o mistério das ondas, principalmente quem encara o mar no auge da sua fúria e potência.
Bicampeão mundial de ondas grandes, o pernambucano Carlos Burle conta: "Os surfistas têm uma relação muito direta e íntima com a natureza. Isso vem desde a criação do esporte". Tanta proximidade pode gerar um sentimento situado além do limite da razão. "Você tem que ter harmonia na água. Quanto mais você se harmonizar, melhor você vai surfar. É importante que você esteja ligado para estar no lugar certo, remar na hora certa." A constatação é de Eraldo Gueiros, conterrâneo e parceiro de campeonatos de Burle, outro que encara paredões de água com mais de 10 metros.
Saindo da água, o entorno também é importante. Acostumado a buscar ondas perfeitas, Marcos Menezes, o Sifu, aponta o valor da aventura como um todo: "Tem todo o ambiente que você enfrenta. A umas praias você só chega de barco, outras são no meio de um deserto. A onda é o prêmio". Os surfistas acabam ficando próximos também das pessoas que vivem no entorno. "Você vai ficando na casa de uma família, de uma galera, vai fazendo uma rede que é quase uma família. Em cada lugar você deixa uma sementinha", conta Sifu.
Além disso, os surfistas são conhecedores das dinâmicas marítimas e naturais. Bruno Pinheiro, integrante da ONG Ecosurfi e surfista por lazer em Itanhaém (SP), diz: "Convivemos diariamente com dinâmicas da natureza que fazem com que a gente tenha que entendê-la: os ventos, a maré, as ondulações, o ciclo da Lua, movimentação dos sedimentos na praia, imigração dos peixes, correntes marítimas".
Portanto, para quem é surfista, parece muito óbvia a importância do mar. Além de provedor de uma diversão infinita, a grande massa de água salgada é um ente natural a ser respeitado e, claro, preservado. Então surge um problema. Como convencer outras pessoas da relevância desse sistema? A maioria delas vive a experiência da praia apenas como turista: passa por ali durante um tempo restrito e se vai.
ONDAS PODEM SUMIR?
Tal pergunta é necessária porque qualquer mudança, por mais leve que pareça, pode mudar uma praia e extinguir uma onda. E as alterações podem ser irreversíveis. Um bom (mau?) exemplo é a praia de Mundaka, situada no País Basco, norte da Espanha. Sua onda prestigiada levou o campeonato mundial de surfe (World Tour) a realizar uma etapa ali. A vila de 1900 habitantes era o único ponto turístico da região e a competição acrescentava milhões de dólares anuais à receita local.
Sem estudar o impacto de suas ações, o governo local resolveu fazer uma dragagem no rio próximo à praia.
Foram removidas toneladas de areia e sedimentos, justamente um dos componentes da incrível onda. Esses sedimentos ajudam a formar uma barreira entre a beira da praia e o mar. O obstáculo tem uma forma de rampa, o que faz com o que a água seja empurrada para cima, formando a onda.
O resultado dessa ação foi a morte de Mundaka para o surfe. Em 2005, a etapa do World Tour na vila foi cancelada por falta de ondas. Foi mais do que um bem natural o que Mundaka perdeu: uma receita anual de 4 milhões de dólares advinda do surfe entrou nas contas do prejuízo. Uma bela praia com boas ondas não é boa apenas para quem surfa, portanto. Pode ser um bem para todos.
A ECONOMIA DO SURFE
Foi isso o que percebeu a ONG americana Save the Waves. Para entender melhor como intervenções humanas afetam praias "surfáveis", foi feito um estudo econômico em conjunto com acadêmicos da Universidade Estadual do Oregon e da Universidade Autônoma de Madri para quantificar as perdas da pequena vila espanhola. Antes, os comerciantes tinham uma vaga ideia dessa perda, mas depois dessa iniciativa os dados ficaram claros: a economia de Mundaka dependia das ondas.
Os surfistas têm outro argumento além da sustentabilidade a favor da proteção da praia. "Uma das maneiras que queríamos usar para educar as pessoas foi através da economia, tentar atribuir números a essas áreas que não são valorizadas pelos políticos e empreendedores." "Sem dados econômicos é difícil argumentar que uma área de surfe tem algum valor", afirma Dean LaTourette, diretor-executivo da Save the Waves. "Quem faz políticas públicas não entende isso", acrescenta.
A nova estratégia não foi inventada, mas é bastante usada por essa e outras organizações de surfistas. Já tem até nome: "Surfonomics", mistura de "surf" com "economics" (economia, em inglês). Pode-se resumi-la em tentar transformar a reverência religiosa dos antigos havaianos pelo mar em números, algo muito inteligível nos dias de hoje.
AÇÃO AO INVÉS DE REAÇÃO
Falar a língua do dinheiro não é, porém, a única estratégia. Percebendo a importância de suas demandas, cada vez mais organizações lideradas por surfistas têm protagonizado a defesa de causas ambientais. E o número de envolvidos está crescendo tanto que em 24 e 25 de outubro de 2011 foi realizada a primeira Global Wave Conference (Conferência Global das Ondas), que reuniu 20 palestrantes de países como EUA, Inglaterra, França, Japão, Espanha, Portugal e Nova Zelândia. Em pauta estava o valor das ondas para o público surfista e o não praticante do esporte. A conferência mostrou que existe um "surfativismo" que se baseia não só em iniciativas pontuais como também em influenciar na maneira de agir das autoridades. Em comum em quase todas as falas foi a ideia de que é preciso parar de reagir às ações dos governos e empreendimentos que ameaçam extinguir ondas e passar a agir, ou seja, tentar influenciar a política diretamente.
Na lista de participantes vê-se o nome de Dom Ferris, responsável pelas campanhas da ONG britânica Surfers Against Sewage (surfistas contra o esgoto). Quando a SAS começou a atuar, conta ele, apenas reagiam ao despejo de esgoto nas praias, protestando e cobrando atitudes das autoridades. Ao longo de 22 anos, a estratégia mudou: "Para operar adequadamente nessa área, para construir uma campanha efetiva, você tem de combinar pontos de vista desde o começo", explica.
"Ficamos um pouco mais sofisticados, nos certificamos de que sabemos com quais áreas estamos lidando, seja governo, comunidade ou tecnologia."
Quanto à questão do esgoto, a SAS obteve uma vitória significativa: conseguiu acordos com algumas das companhias de tratamento de água para que elas informem ao público quando vão despejar dejetos no mar. Sua atuação rendeu também participação nas diretrizes para áreas de banho, legislação prevista para entrar em vigor em 2015.
A maior vitória veio da Escócia: "Somos [os surfistas] reconhecidos pela lei como atores importantes para o ambiente marinho, então eles [o governo] têm de nos consultar antes de qualquer planejamento feito na costa ou no mar", diz Ferris. Na Nova Zelândia, os surfistas conseguiram ser ouvidos como classe e levaram o projeto de construção de uma marina - algo que "matou" a onda em Whangamata - à suprema corte do país em 2002. Enfim, suas opiniões foram ouvidas pelo estado como especialistas em assuntos costeiros.
Para tentar aprofundar a ideia de que as praias devem ser protegidas, foi criada a World Surfing Reserves, órgão internacional que cria "reservas do surfe". Duas praias já foram incluídas nesse status, que tem por enquanto importância simbólica. Em Portugal, até o presidente Aníbal Cavaco Silva elogiou a eleição da região da Ericeira como reserva internacional. A organização SOS - Salvem o Surfe luta para que esse status seja reconhecido legalmente.
ATIVISMO À BRASILEIRA
No Brasil, a ideia de uma "surfeconomia" ainda não vingou. O Ministério do Turismo, por exemplo, disse (através de sua assessoria de imprensa) que não coleta dados da receita gerada pelo turismo motivado pelo surfe. Ainda não vemos organizações parecidas com a Save the Waves e a SAS, porém o ativismo parece também se focar na atuação junto às políticas públicas.
Em Itanhaém, litoral paulista, a ONG Ecosurfi foca a educação ambiental de surfistas e do público. Começou fazendo mutirões de limpeza da praia. Só que os surfistas perceberam que eles não eram "os únicos a gerar lixo a praia", segundo Bruno Pinheiro, gestor de projetos da ONG. "Começamos a trabalhar com a educação ambiental de uma maneira mais abrangente", afirma. Em 2010, ofereceram cursos de capacitação a professores da Baixada Santista, visando à implantação de projetos de educação nas escolas da região.
A preocupação também chegou ao campeonato nacional, o Brasil Surf Pro. Além de iniciativas como neutralizar a pegada de carbono do evento, a organização realiza seminários sobre sustentabilidade nas comunidades onde são realizadas as etapas e criou um termo de compromisso que todos os atletas da competição devem assinar.
Como o Brasil receberá dois grandes eventos nos próximos anos (Copa do Mundo em 2014 e Olimpíada em 2016) e o país passa por um "boom" de obras, a preocupação com alterações na costa brasileira deve aumentar. Para Pinheiro, o desenvolvimento do país "gera muito ônus socioambiental e não existe a participação da população no planejamento das obras".
Se os havaianos, inventores do surfe e seus principais representantes, buscavam nas razões espirituais os motivos para protegerem as praias e suas ondas, os dias de hoje não permitem só isso. Antes, os deuses estavam no mar e ajudavam a proteger os homens. Agora, cabe aos homens proteger a natureza contra os deuses da destruição.
Fonte: planetasustentável