domingo, 6 de setembro de 2009

De que revolução se trata

Continuação....







A ruptura necessária para salvar o planeta conduz a valores e lógicas sociais pós-capitalistas. Mas não se confunde com a "tomada" do poder (A possível Revolução Energética, parte 4)

Antonio Martins

No imaginário político dos séculos 19 e 20, o conceito derevolução estava associado a algumas noções centrais. O ponto de partida era a "tomada" do poder estatal por classes sociais e organizações políticas dispostas a construir uma ordem social antagônica ao capitalismo. Muitas vezes acompanhado de violência (a chamada "violência revolucionária"), esse passo era visto como o decisivo para iniciar as transformações. Imaginava-se que, como o Estado era o instrumento que assegurava a dominação de classes muito minoritárias (a burguesia e os grupos associados a ela) sobre os trabalhadores, sua conquista era indispensável. Uma providência quase imediata era a estatização, tão vasta quanto possível, da economia: em especial, das fábricas. Colocar os meios de produção sob controle da maioria era um meio seguro, segundo se acreditava, para criar, mais adiante, novas relações sociais e idéias. Além disso, como os Estados-Nações eram o centro quase exclusivo de poder, as revoluções tinham caráter (e nome...) nacional: Revolução Russa, Chinesa, Cubana etc.


Há algo comum a todas elas, além do heroísmo e de certas mudanças reais. O novo Estado, fortaleza da revolução, tendeu, em todos os casos, a concentrar as iniciativas, a se sobrepor e ocupar os espaços da sociedade, a ver com desconfiança suas ações autônomas. A divisão entre o fazere o comandar, típica do capitalismo, permaneceu, travestida de novas roupagens. Quem dava as ordens já não eram os patrões e os políticos burgueses, mas os chefes do partido "revolucionário". Como a mudança de valores era um objetivo a ser alcançado a longo prazo, regressaram sempre, passada a fase inicial de entusiasmo e idealismo, os comportamentos típicos de uma sociedade cindida: egoísmo, prepotência, autoritarismo — e, de outro lado, comodismo, desalento, inveja.


Como o foco do Greenpeace não é a sociologia da emancipação social, o relatório sobre alternativas à mudança climática não debate as novas formas de ação política e transformação. Mas é provável que esteja implícito, no documento, um novo conceito de revolução. Elas podem ser os momentos nos quais as sociedades, depois de terem experimentado, em pequena escala, lógicas sociais pós-capitalistas, tornam-se capazes de adotá-las amplamente — e de vencer a resistência dos grupos interessados em conservar as velhas relações, para garantir privilégios. Revolução energética. Revolução do mundo do trabalho. Revolução feminista. Revolução das trocas internacionais. Revolução das finanças públicas mundiais. Revolução sexual. E tantas outras. Na cultura ambientalista, sinal de uma nova forma de política
Dois elementos centrais articulam-se, no desenho desta concepção alternativa. O primeiro é o surgimento e difusão de uma cultura política baseada na ação autônoma, como resposta à fragmentação social e ao esvaziamento da democracia representativa, que marcam a pós-modernidade. A estrutura de classes sociais e partidos constituída a partir da Revolução Francesa e da industrialização foi fortemente abalada, nas últimas décadas — e não há sinais de que possa se recuperar. A indústria deixou de ser tanto o grande centro da produção de riquezas quanto o ambiente no qual se formava uma classe assalariada numerosa, consciente e disposta a mudar o mundo. O poder dos Parlamentos, e em certa medida também o dos chefes de governo, apequenou-se diante da força das instituições globalitárias (FMI, Banco Mundial, OMC), dos mercados financeiros, das grandes transnacionais. "Esquerda" e "direita" deixaram de ser posições nas quais os cidadãos sentem-se identificados, e a quem confiam a representação de sua vontade.
Mas este novo cenário não produziu apenas desencanto e apatia. Gerou também um outro tipo de politização — que se expressa nos Fóruns Sociais Mundiais, e é cada vez mais comum, principalmente entre as gerações mais jovens. Ao invés de delegar poder, as pessoas associam-se autonomamente, para alcançar objetivos que relacionam à possibilidade de um mundo mais justo e humano — e que não são alcançáveis se prevalecerem na sociedade apenas as lógicas gélidas do cálculo econômico. O ambientalismo foi uma das vertentes pioneiras desse processo, e continua sendo uma das mais ativas. Como proposta de mobilização social, nasceu há apenas quarenta anos — mas mudou a face do planeta em diversos aspectos. Assegurou a preservação de inúmeros ecossistemas e espécies, que de outra maneira não teriam resistido. E — talvez ainda mais importante — desafiou a cegueira do antropocentrismo, despertando, em cada ação humana (da construção de uma casa à assinatura de um acordo para um empreendimento internacional), a possibilidade de refletir sobre seu impacto sobre a natureza. O alargamento dessa consciência levou ao desenvolvimento de práticas, saberes, lógicas e empreendimentos que, no campo da energia, podem oferecer alternativa real ao paradigma dos combustíveis fósseis.
No entanto — e aqui entra em cena um segundo elemento para uma nova idéia de revolução —este acervo de competências não é suficiente para salvar o planeta. Para que as ações autônomas produzam mudanças mais profundas e duradouras, é preciso que, em determinados momentos, pressões concentradas paralisem as engrenagens cegas do mercado e estabeleçam o direito das sociedades a construir seu futuro comum. É algo muito mais complexo que "conquistar" o poder de Estado. No caso da energia, significa abrir espaço para que o novo paradigma — baseado em valores mais avançados, testado experimentalmente e dotado de tecnologias necessárias para se reproduzir — espalhe-se pelo mundo.



Imagem de microscopia eletrônica do nanofio que compõe a célula fotovoltaica 200 vezes mais fina que um pêlo

Decisões que podem mudar a história da energia

O relatório do Greenpeace adverte: o período crucial será o dos próximos anos. No setor de energia, nada de bom se improvisa: a construção de uma usina pode levar anos e as políticas definidas num dado momento produzem efeitos por décadas. Precisamos adotar agora as decisões que permitirão reduzir à metade as emissões de CO2 até 2050. O documento relaciona medidas de dois tipos: é preciso estimular a geração de energia limpa e, ao mesmo tempo, desmantelar o enorme arsenal de mecanismos que promove a reprodução do velho padrão.
No primeiro grupo figura a definição de metas obrigatórias e progressivas para a presença das fontes renováveis na matriz energética total. As tecnologias das fontes renováveis estão em rápido desenvolvimento, e o patamar já alcançado permitiria gerar 5,9 vezes mais energia que a consumida no planeta. Os Estados têm, portanto, meios para iniciar a substituição da energia fóssil. Podem instalar usinas renováveis, nos países (como o Brasil) em que controlam boa parte da geração; ou determinar legalmente, às empresas privadas de distribuição, que ajustem sua oferta de energia às metas fixadas. Devem ser removidas as barreiras que muitos destes distribuidores impõem, alegando motivos diversos, à entrada de energia renovável em suas redes. E deve haver, em benefício das fontes limpas, subsídios que garantam o retorno dos investimentos e estimulem ganhos de produtividade.
Tais estímulos serão menos necessários à medida em que os Estados cancelem os vultuosíssimos benefícios que oferecem à produção de energia suja. Um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
calculou que apenas os subsídios monetários e diretos somam, em todo o mundo, algo entre 250 e 300 bilhões de dólares a cada ano. Mas não são apenas uma ponta de iceberg. Hoje majoritariamente privada, a geração de energia fóssil beneficia-se das usinas e redes de transmissão construídas ao longo de décadas, em grande parte com recursos públicos. Essa vantagem estabelece uma comparação de preços distorcida. Muitas vezes, a eletricidade proveniente do petróleo ou carvão parece mais barata porque computa apenas o custo dos combustíveis e da manutenção de usinas já construídas. Por fim, é preciso incluir, no preço da energia fóssil, o custo pago, pela sociedade, para corrigir os impactos sobre o ambiente (como as chuvas ácidas) e a saúde (como as doenças respiratórias). Encomendado pela Comissão Européia, o relatório Estern

demonstrou, em 2005, que, caso transferidos aos geradores que poluem, esses custos provocariam um aumento de 100% nos preços da energia proveniente do petróleo e do carvão, e de 30% na originária do gás.

A construção de múltiplas formas de contra-poder



As medidas sugeridas pelo Greenpeace são uma primeira abordagem, que merece ser complementada. Como se trata de transitar de um modelo onde predomina o automatismo do mercado para outro em que prevalece a consciência, será decisivo envolver permanentemente as sociedades. Não apenas na pressão sobre as instituições mas também no acompanhamento dos resultados. Certos instrumentos são muito mobilizadores. Mapear, em cada país ou região, as principais fontes de emissão de CO2 permite tornar conhecidos fatos essenciais da vida social. Estimula o sentimento de co-responsabilidade, o questionamento do poder e a busca de alternativas. O Brasil, por exemplo, possui uma das matrizes de geração de eletricidade menos sujas do mundo, baseada principalmente na força das águas. No entanto, essa vantagem está ameaçada. Como em certas regiões o potencial hídrico atingiu seu limite, estão sendo construídas, como complementação, usinas termelétricas alimentadas por gás ou petróleo. Por que não preferir, ao invés dessa solução conservadora, o aproveitamento das grandes potencialidades de nossas fontes eólicas, solares e de pequenas hidrelétricas?



Se o aquecimento da atmosfera é um problema planetário, as atitudes conscientes não precisam se limitar à esfera nacional. Novas regras para as trocas internacionais, de sentido contrário às que a Organiazação Mundial de Comércio (OMC) pratica hoje, deveriam punir, com impostos de importação elevados, os bens e serviços provenientes de países que emitem exageradamente CO2, não agem seriamente para reduzir as emissões ou as estão elevando muito rapidamente. Se houver articulação da sociedade civil, ações autônomas com grande poder de pressão podem antecipar o efeito de mudanças institucionais, em geral mais demoradas. Para forçar os governos que ainda resistem ao Protocolo de Quioto a reconsiderar sua atitude, boicotes internacionais poderiam atingir, em certos momentos-chaves, os produtos originários desses países.
A pressão sobre as atitudes dos governos vai, por sinal, tornar-se cada vez mais decisiva, nos próximos anos. Novas negociações estão em curso, no âmbito do Protocolo de Quioto, para definir as metas de redução das emissões em mais dois períodos: 2013-2017 e 2018-2022. Sintoma adicional de crise da democracia representativa: um tema tão relevante não mobiliza os governos, não leva os parlamentos a promover debates públicos, não merece o mínimo destaque na imprensa tradicional.
Mas precisamente este silêncio e esta ausência deveriam estimular a nova cultura política a ir adiante em sua revolução. Se as sociedades foram capazes, por meio de múltiplas ações autônomas, de enfrentar um desafio tão profundo, e no qual se opõem tão claramente as lógicas da alienação e da consciência, então estará aberto caminho para construir um mundo novo.



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